quinta-feira, 12 de abril de 2012

Os poetas marginais do Recife (Entrevista, pte 1)

Essa foi uma entrevista feita pelo jornalista  Urariano Mota, na altura, correspondente do site espanhol
La Insignia, em junho de 2007. Em Olinda. Desse papo participaram, além de Malungo, Massapê, Valmir Jordão e Lara.  Confira agora a primeira parte dessa entrevista. Nos próximos posts, as outras partes:



OBS: As falas aqui expostas pelos entrevistados são de total responsabilidade de cada um deles.



A entrevista que vão ler é um corte, um segmento violentador da realidade. Toda narrativa é um corte, uma edição. Mas neste caso a edição se fez antes de o gravador começar a gravar. Melhor dizendo, se entendemos a edição como cortes dirigidos para realizar um corpo montado, orgânico, o corte profundo que vão ler não é nem mesmo uma edição. É como um lance de dados, que me coube por sorte. É como um mergulho no oceano, que não dá conta da vida ampla do oceano. É como um acidente imprevisto em uma voragem. A impressão que eu tenho é que fui tragado.
A poesia marginal de Pernambuco é um oceano que a imprensa não vê. Imaginem o tamanho da cegueira. São, por baixo, mais de 50 poetas, das mais ricas tendências, que se apresentam nos palcos, em shows, em recitais. Eles se fazem notar mais pela palavra falada que pela escrita. A razão é simples, se perdoam a pobreza do adjetivo. Os seus poemas estão em edições pequenas, de tiragens pequenas, de circulação pequena, a preço de duas cervejas. Daí o vulgo e a vulgar compreensão concluem que são poetas pequenos. E, justiça seja feita, é um ranking bem desigual. Diferente dos grandes, eles não são apresentados pela mais douta e circunspecta crítica, aquela que descobre em cada obra uma reedição de Baudelaire, de Elliot ou da última referência que estiver em moda. Diferente dos grandes, eles são todos filhos de má família, um eufemismo que apenas quer dizer, não passam todos de filhos de uma puta. Diferente dos grandes -e aqui vai a sua marca, o seu ferrete, o seu estigma - esses poetas estão todos com raiva e ódio deste mundo. Ora, como falar bem de indivíduos que desejam o fim dos nossos empregos, a morte dos nossos patrões, que vêm para a destruição em hordas kamikazes? E no entanto, quem não ouviu Miró, quem não ouviu a palavra de França, a repetir como uma lâmina que fere em recital, "pensar dói, pensar dói", não conhece ainda a fruição da poesia que é música. Suas apresentações suspendem a estupidez do cotidiano. Não sei se me expresso bem, mas eu sinto nas suas apresentações um gozo musical da inteligência.
Confesso que despertei para a sua poesia quando faleceram dois poetas-símbolo do movimento, Chico Espinhara e Erickson Luna. O intervalo dos seus óbitos foi curto e eloqüente.

Chico:

«Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão»,


Em fevereiro de 2007.


Erickson:

«porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas.»



Em abril de 2007.

Dois meses entre um e outro. De males diferentes, mas de gênese única. Ambos poetas cujo estilo de vida, de aparência romântica, foi antes uma autodestruição pelo álcool e por outras drogas que não atingiram o veneno da legalidade. Dois poetas representativos de uma das tendências do movimento. Então acordei. Se a morte me despertou, a carência de vida me levou ao encontro destes quatro que agora entrevisto. Estamos em um bar - que cenário seria melhor para esta entrevista? - na Pitombeira dos Quatro Cantos, em Olinda.


 Vamos começar pela apresentação. Por favor...

- Valmir Jordão, 46 anos, poeta desde 1982, com 10 livros lançados. O primeiro pela Pirata.
- Lara, pseudônimo. O nome mesmo é José Luís Miranda. Eu tenho 7 livros, de prosa e poesia. Esses 7 livros estão disponíveis no site Interpoética. Alguns publiquei em papel, mas agora estão todos lá. 46 anos.
- Massapê, tenho 31 anos. Meu nome real é Adeildo Eugênio dos Santos. Massapê é uma longa história, porque eu cultuo o exu, eu sou do candomblé, e tem uma entidade lá que é Seu Toquinho, disseram que eu sou parecido com ele, e o nome pegou. Massapê que é feito de barro e eu considero também um exu. Dou uma força no fanzine "De cara com a poesia" de Malungo. Faço poesia, crônica do cotidiano de 3 personagens que falam do cotidiano da humanidade. Tiro sarro com o pobre, o rico e o babão.
- Malungo, 38 anos, poeta desde 1985. Tenho um livro chamado "O terceiro olho usa lente de contato". Tenho um CD com minhas poesias, participei da Marginal Recife... tenho um fanzine chamado "De cara com a poesia", há 5 anos, que vai para 21 estados brasileiros. O meu nome real é José Carlos Farias da Silva. Me chamo Malungo porque esta é uma homenagem que fiz a Chico Science.

 Valmir, você se considera poeta marginal?

- Embora esteja na Academia, fazendo musculação os que estão com os músculos flácidos. Como poeta participei do Congresso Nacional sobre Poesia Independente, em Salvador, em Vitória, em Fortaleza, e o quarto e quinto congressos foram aqui, um em Olinda e outro no Recife. A gente fez dez encontros estaduais de poesia independente. Quem estava à frente eram Chico Espinhara, Luiz Carlos Monteiro, Eduardo Martins, Cida Pedrosa.. eu fui partícipe nessa época. Não fui mentor nem organizador, como Chico Espinhara, Cida, Luiz Carlos e Eduardo Martins, tá legal? Samuca Santos, Fátima Ferreira, Hector Pelizzi ... isso em 1979 pra 1980. Em 82 eu lancei um livro pela Pirata, com Jaci Bezerra, e Arnaldo Tobias, e o nosso amigo Alberto da Cunha Melo, o maior poeta vivo da língua portuguesa, na minha concepção. Depois comecei a virar pareceiro de Erickson Luna, com quem comecei a ter uma convivência no Beco da Fome, isso em 79. Com Chico Espinhara, com Fred Caminha, Jorge Lopes...

 Lara, você tem algum problema com o nome de poeta marginal?
- Não, tenho não. Eu inclusive sempre gostei dessa denominação. Nomenclaturas, marginal, alternativo, underground, contracultura, eu sempre gostei. Agora, eu reconheço, como Valmir, que poesia é poesia, tanto faz ser acadêmica, clássica, alternativa, marginal... e esse lance também que poesia é marginal em qualquer lugar. Agora, essa diferenciação eu sempre gostei, porque ela traz uma carga simbólica de imediato que diferencia de coisas que eram feitas pela Academia, pelo estilo mais clássico, pelo pessoal que não tinha coragem de fazer certas coisas que a gente colocou, como te falei antes. Eu gosto desses termos, principalmente o alternativo, literatura alternativa, porque já tem uma carga simbólica, quando você fala já diferencia desse pessoal, que a gente sempre gostou de diferenciar. Hoje, não, hoje a gente vê a academia como uma parte do todo, como uma parte importante, que tem aspectos negativos, mas tem aspectos positivos também, a gente até venceu isso, não cultiva mais aquele rancorzinho de compartimentar, a gente está colocando todas as áreas em pé de igualdade, o regional, o acadêmico, o contemporâneo, está todo o mundo em um pé de igualdade, a gente já tem essa lucidez hoje. Agora, eu gosto de ter uma carga simbólica que diferencia, porque marca, marca, não é?, mais ou menos algumas características nossas. É marca.

- Massapê, algum problema pra você, em ser chamado de poeta marginal, ou independente?
- Não, eu gostaria até de acrescentar um pouco também: anarquista. Poeta marginal, independente e anarquista. Contra o sistema capitalista. Totalmente contra.
Lara intervém:
- Essa postura contra o sistema capitalista sempre foi uma coisa interessante, sempre tivemos a coragem de colocar. O pessoal da geração 65, como lhe falei, ficou sem a coragem de olhar isso. A gente sempre escancarou. A gente sempre se colocou como anticapitalista. Agora, não como uma ortodoxia marxista. Não panfletista. A conscientização coletiva da gente ia além de uma ortodoxia marxista.

- Malungo, você tem algum problema em ser chamado de poeta marginal, ou independente, você faz distinção?
- Hoje, tenho. Primeiro, continuo sendo estética e ideologicamente marginal, concordo com Lara, com Valmir, mas eu vejo que a imprensa, e até as pessoas que não nos conhecem, jogam tudo em um bolo só. Então vem um monte de ... (vozes diferentes se sobrepõem na gravação) você sai num jornal, no ano passado, saiu uma matéria, distorcendo completamente. Colocaram como poeta marginal o cara que vive trocando a recitação de um poema por um gole de cachaça, bêbado, o cachorro lambendo, em um mercado sujo, entendeu? Aí pra mim eu prefiro não ser chamado, porque sempre vem uma carga de preconceito em cima. E outra coisa: alguns poetas marginais são marginais, têm hábitos de marginais, então jogam todo o mundo num patamar só. Algumas pessoas têm essas atitudes, entendeu?, de marginais... tem gente que vai montar uma revista, aí pega o dinheiro dos comerciantes e come o dinheiro todinho... aí se eu for atrás desse comerciante, o que é que ele vai dizer? Está fechada a porta, você está me entendendo? A minha história é essa: esse preconceito com a imprensa, essas atitudes queimam a gente. Três ou quatro marginais queimam cinqüenta. Eu não tenho nada contra Lara e Valmir, são meus amigos, mas essa história eu começo a ver, sabe?, lá no fim, quando é que vem esse preconceito, quando sai uma matéria dessa, não é?
Valmir intervém:
- Eu falei que marginal era a poesia. Geraldino Brasil diz o quê? (Recita e cita de memória) "Um engenheiro, ótimo na família. Um advogado, ótimo. Um poeta, melhor na família dos outros". Entendeu? Então quer dizer, cara...
Malungo retorna:
- É aquela coisa, você vai continuar sendo, mas esse pêlo é muito sujo, eu acho, entendeu? Por conta desse preconceito, da imprensa com a gente, e a ignorância de algumas pessoas que leva até a pensar que é marginal mesmo. Eu acho isso.


- Valmir, você conceituou que não tem problema de ser chamado de poeta marginal, e você retoma aquele conceito clássico, de Platão.... Mas como foi que você caiu nessa, de fazer poesia marginal? Não tinha uma coisa mais arretada na vida pra fazer que isso não?
- Olha, vê se tem coisa mais arretada do que esse poema, "Justiça total". (Recita) "Coca para os ricos. / Cola para os pobres. / Coca-cola é isso aí". Valmir Jordão, com J, ouviu?, não é com G, seu Gordão. (Ri, como uma vingança do entrevistador, que lhe perguntara se não tinha coisa melhor na vida para fazer.)
- Certo. Mas por que você não foi fazer outra coisa na vida?
- Olha, eu sempre fiz outras coisas, até porque eu já consumi mais de 50.000 colomis.
- 50 mil o quê?
- Colomi. A seda do papel que envolve a maçã. (Gargalhada geral) Ô irmão, não precisa também chegar nesses detalhes estratégicos, isso pode me prejudicar, porra....
- Então, não fale.
- Bom, eu estou falando, porque você está me provocando.
- Mas eu tenho que provocar.
Lara intervém:
- Ele avisou que iria provocar.
Malungo:
- Arreganhe! Arreganhe...

(Continua...)

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